terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Palavras e murmúrios

Nas minhas andanças por aí e vivenciando os mais diversos tipos de experiências, percebi que elas podem ser boas, agradáveis, indesejadas, inusitadas, etc... Algumas delas são facilmente traduzíveis ou descritíveis, outras são árduas e difíceis de explicar. Mas tem algumas poucas que são tão intensas que as palavras podem demorar dias, meses e até anos pra chegar e permitir a sua perfeita elaboração.

Essa percepção me veio muito claramente hoje, ao assistir ao programa do Jamie Oliver, gravado em New Orleans. Eu sempre tive vontade de falar da minha visita a Lousiana, mas eu não conseguia traduzir - nem pra mim mesma - o que eu realmente senti. Ao ouvir, entretanto, as impressões de Jamie Oliver, concordei com tudo o que ele disse. Segundo ele, a Lousiana parece um daqueles saquinhos de confeitos de sabores e cores  variadas. A gente enche a mão, joga tudo na boca e o resultado é uma explosão de sabores...



A Lousiana é o resultado da conjugação de influências inglesas, francesas, alemãs, espanholas, negras... mas New Orleans, especificamente tem uma preponderância da influência francesa, uma vez que foi fundada por exploradores franceses.



A cidade é famosa pelos seus tradicionais bondes elétricos...



por ser o berço do jazz e pelos concorridos festivais...



pela presença penetrante e silenciosa do Rio Mississipi...



...e seus tradicionais barcos vapores...



...e pela culinária cajun ou creole.



 Os pontos marcantes da culinária cajun são "o uso de condimentos fortes, frutos do mar e a incorporação de elementos usados pelos colonizadores espanhóis e franceses, como o presunto. A culinária créole legou para o mundo a jambalaya, prato a base de camarão, linguiça e arroz, preparado ao estilo da paella espanhola."


Eu, particularmente, não tenho restrições a comidas apimentadas - tenho até predileção por pratos sabidamente picantes -, mas experimentar a comida cajun, em New Orleans, foi muito mais do que eu poderia esperar: é o ápice da experiência da ardência a que tive acesso, apesar de extremamente saborosa.


Quando eu lá estive, em 2008, a cidade já se recuperava da devastação do Furacão Katrina e sua brava gente tentava restabelecer a atmosfera lúdica e festiva da cidade. Os habitantes de New Orleans, mais do que nativos orlenianos, são pessoas dos mais variados lugares, que escolhem viver ali. Essas pessoas - como salientou Jamie Oliver - não se amedrontam e fogem, mas resistem e reconstroem o lugar que escolheram para viver, por acolher o seu estilo de vida.

O que eu vi ali foi o mesmo que Jamie Oliver viu e o que se sente ao assistir um filme ali ambientado, chamado A Love Song for Bobby Long: "a state full of people who use food as a way to celebrate life and keep the party going through adversity. "




Ao terminar esse post tenho a impressão de não ter chegado nem perto de descrever a minha experiência na Lousiana. Talvez isso não seja possível. Dizem que "não conhece a Grécia quem não se perde pelas ruas de Atenas", não é? Talvez para se ter a idéia do que seja New Orleans, a pessoa tenha que queimar a língua num prato Cajun, transbordar os ouvidos de trompetes na Bourbon Street, divertir-se com as lojas de bonecos vudus e repousar num barco vapor, ouvindo os múrmúrios e segredos do ancestral rio Mississipi...

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Aconchego Andaluz

A Andaluzia, na Espanha , tem muitos encantos e viajar de carro por lá é muito prazeroso...



 
Plantações de Girassol       -          Centenas de km de flores à beira da estrada



 
Apresentação de Flamenco                                                 

Para quem está de carro na Espanha e pretende atravessar o Estreito de Gibraltar, para ir ao Marrocos, algumas cidades da Andaluzia tem especial importância, pois delas partem os ferry-boats para a África, principalmente Tanger, o maior porto marroquino.

Tarifa, Reino da Espanha

Aqui vai uma dica para quem deseja fazer a travessia de carro: Algeciras é a cidade mais procurada e nela funciona a maioria das empresas que fazem o trajeto, mas, a apenas 11km dali, está Tarifa, uma cidadezinha encantadora, que é muito mais fresca, limpa e agradável do que a vizinha mais conhecida e dispõe de mais de uma empresa que faz o percurso para Tanger.

Tarifa fica exatamente no ponto mais meridional (ao sul) da Europa  e, por isso, situa-se no ponto mais estreito da passagem de Gibraltar, estabelecendo a fronteira entre o Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo.



É conhecida como a Cidade dos Ventos e, por conta dos ventos constantes, considerada a capital mundial do windsurf e kitesurf.

Além dos esportes "eólicos" e da observação dos cetáceos (baleias e golfinhos),  estar em Tarifa e conviver com seus  (apenas) dezesseis mil habitantes é repousar no mais tranquilo e agradável espírito andaluz de viver.




segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Fronteira


Porque tem dias que, no deserto das próprias palavras, deparamo-nos com o oásis das palavras alheias, no qual se pode reconhecer  nos reflexos das águas letradas e nelas banhar-se... com o deleite da mais pura identificação.




Para Maria da Graça, Paulo Mendes Campos

"Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gato se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" é bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: "A minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo" Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. é isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor`.
Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça."