segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Aconchego das letras

Tem um tipo muito característico de pessoas: aquelas que gostam de livraria.

Essas pessoas não são necessariamente aquelas que gostam de ler. Tem pessoas que leem mais jornais e revistas e frequentam, por essa razão, as bancas de jornais. Outras pessoas aderiram totalmente aos e-books e nem saem de casa mais pra rechear seus e-readers.

Portanto, dentre o universo dos leitores, uma parte menor deles são pessoas que gostam de frequentar livrarias.

E tem mais uma característica típica deste tipo de pessoas: elas são muito parecidas em todo lugar. Nos mais diversos países, quando se entra numa livraria, encontra-se pessoas com um semblante semelhante. É uma fisionomia de paz e encantamento.

Imagino que o relaxamento venha do fato de ser um momento sempre positivo; porque a pessoa está à procura de um objeto do desejo, ou porque está em busca de resposta para uma questão, ou porque está aberto para ser capturado por uma curiosidade estimulante. Em qualquer destas situações, os livros parecem ser pequenos tesouros e as prateleiras parecem ser mananciais inesgotáveis.

Nas minhas andanças, cruzar com uma livraria qualquer rende, no mínimo, a diminuição da marcha, pra contemplar a vitrine. Em alguns casos, serviu para inspiração de programação, ainda que não tenha compreendido o idioma predominante. Sempre se pode recorrer ao inglês ou, qual criança, desvendar as imagens.

Mas, em algumas situações, a ida à livraria se tornou o ponto alto do passeio, por alguma razão especial que algumas delas vem a ostentar.

Estando no Porto - Portugal, fui conferir a beleza da Livraria Lello e o dono nos recebeu à porta, com as suas histórias e curiosidades do estabelecimento.






Visitei, em Londres, a Hatchard's (desde 1797), imaginando por ali Jane Austen, que era sua frequentadora.

oldshop


Estando recentemente em Curitiba, resolvi fazer o "Roteiro Paulo Leminski", um circuito que inclui lugares que ele frequentava na sua cidade natal. Por esta razão, cheguei à Livraria do Chaim.




Cruzando a porta, fui recebida pelo sorridente Sr. Aramis, de quem depois fui saber o nome. Ofereceu-me água, café ou chá, que poderiam ser conseguidos no andar de cima.



Voltando lá de cima, quando comecei a procurar uns livros, o Sr. Aramis me ofereceu um assento, sugestões, conselhos e ponderações. Mostrou-me um livro, recomendando a leitura de um trecho. Sorrindo me disse; "Você é um vagalume!"




Depois desse trecho, veio outro, mais tantas considerações e reflexões. Resolvi deixar os livros que havia procurado e levar o que ele me havia recomendado. Feliz com a notícia, acabou me presenteando ainda com mais um!

Deixei a livraria com a impressão de que o ponto alto do passeio foi conhecer  o Sr. Aramis Chaim. Na minha lembrança ficaram todas as suas sábias colocações e o trecho do livro que agora eu trazia comigo;

"Toda a psicologia da inveja está sintetizada numa fábula, digna de ser incluída nos livros de leitura infantil. Um sapo pançudo coaxava em seu pântano quando viu um pirilampo resplandecer no alto de uma pedra. Pensou que nenhum ser tinha o direito de exibir qualidades que ele próprio não possuiria jamais. Mortificado pela sua própria impotência, pulou sobre ele e cobriu-o com seu ventre gelado. O inocente pirilampo atreveu-se a peguntar: Por que me cobres? E o sapo, congestionado pela inveja, só conseguiu interrogar por sua vez: Por que brilhas?"
 (El Hombre Mediocre, José Ingenieros, publicado em 1913)



quinta-feira, 9 de abril de 2015

Uma tarde no Café Trieste

Férias é aventura, sair da rotina, experimentar novos sabores, texturas, aromas e temperaturas.

O intuito das férias é viajar, ir pra longe, transpor fronteiras e abandonar-se a si mesmo. "Tchau myself, a gente se vê quando eu voltar".

Daí começam os planos, esquemas, programas e roteiros. Nem nos damos conta de que as férias são pra reenergizar e que o seu planejamento não pode ser mais rígido do que a rotina diária.

A grande descoberta para fazerem as férias serem, de fato, um descanso pra alma, é dar espaço pro acaso. Ter aquela folga de tempo na programação, pra encaixar um interesse inesperado, ou satisfazer a necessidade do 'dolce far niente'.

Minha estada em San Francisco, cidade em que já estive antes, teve o propósito de descansar das atividades que eu teria antes e depois dessa parada. Enquanto recobrava minhas energias numa estada lânguida e reconfortante, desvendaria melhor os mistérios dessa cidade tão instigante.

Foi assim que, num sábado, resolvi fazer, a pé, mais um trecho da Scenic Drive, um percurso demarcado na cidade, que fornece vistas gratificantes da região.




O movimento começou ao deixar o hotel somente ao meio-dia, como vinha sendo praxe nesses dias de descanso. Tudo corria muito lento e agradável.  A fome ainda não dava sinais e a temperatura era controlada pelo lado da calçada (com ou sem sol) que eu escolhia usar.

De repente, logo após passar por Chinatown, me deparei com o Café Trieste (! O imprevisto !). Na minha outra estada aqui, tinha passado em frente e tirado uma foto rápida, por ter me lembrado que era um lugar que Jack Kerouac costumava frequentar.




Decidi entrar e ficar, afinal era sábado e eu queria sentir a atmosfera do lugar.




A fome nem era tanta, mas como eu deveria consumir pra poder estar lá, pedi uma fatia de quiche e uma taça de pinot grígio.




Aos poucos, o lugar foi entrando em mim. Comecei a comer devagar, saboreando o vinho e reparando a vida que corria ao redor. Tinha gente só lanchando, tinha gente escrevendo...





...jogando xadrez...




...pintando...




Na jukebox tocou desde folk até tango argentino. Quando, animada pela segunda taça de pinot grígio...




...começou a tocar California Dreamin!

A Scenic Drive teve que esperar, porque eu gastei muuuitas horas no Café Trieste. Mas, afinal, férias (com F maiúsculo) não é isso? Acolher o acaso com carinho e gastar uma tarde de sábado num lugar especial?!?




PS - O bônus da tarde aconteceu quando Jeff, uma pessoa queridíssima, veio se sentar ao meu lado. Puxou conversa, dizendo que ia comer um bread pudding, que não era light nem barato, mas que era muito saboroso... Eu, então, querendo ser simpática, disse que era sábado e, portanto, extravagâncias podiam ser feitas.

Nesse momento, Jeff, meio surpreso meio divertido, me contestou, dizendo que, na verdade, "crazy things" devem ser feitas "e-ve-ry-day"!!! Segundo ele, esta é a razão de ele estar em San Francisco há trinta e cinco anos.

Segundo Jeff também, o Café Trieste está há esse tempo todo "do-mes-mo-jei-to". Partiu se desculpando, porque disse que eu parecia ser uma pessoa boa de fazer "crazy things with".





Jeff ficou na minha lembrança por muito tempo e me fez pensar no que eu havia lido, de que, na verdade, "San Francisco is a frame of mind".