Há muito, muito tempo atrás, numa abadia da Irlanda havia dois monges. Seus nomes eram Annan e Senan e, enquanto um era alto e magro, o outro era baixo e gordinho. Para além das diferenças físicas, no entanto, eles se uniam através de incontáveis semelhanças: eram igualmente gentis, devotados e justos. Eles viviam nesta abadia há exatos vinte e cinco anos, todos os amavam e eles amavam o mundo.
Chegou o dia em que o velho Abade morreu. Ele tinha sido um homem admirável e deixou, além de uma eficiente e bem sucedida abadia, a grande questão: quem seria o próximo Abade? Para a surpresa de todos, o falecido Abade escolheu não deixar decida a questão da sua sucessão. Desde os tempos mais remotos, as abadias da Irlanda sempre mantiveram uma atitude de independência em relação a Roma e aqueles monges acreditavam em escolher seu próprio Abade.
Annan, Senan e os outros monges sabiam que a escolha do novo Abade tinha certa urgência. Quando os monges vieram a se instalar nessas terras, receberam a área para construir o monastério de um fazendeiro local, um homem saudável, que tinha sido batizado pelo próprio São Patrick. Ao longo das próximas quinze gerações, os descendentes do fazendeiro sempre permitiram que a Abadia ali permanecesse, sob o respeito de apenas uma condição: que eles se sentissem confortáveis com a escolha de cada Abade. Assim, passou a acontecer que eles ou escolhiam o Abade ou ajudavam na escolha.
Quando o velho Abade morreu, as terras pertenciam a uma viúva, chamada Delia, bastante hábil e, como todos, ela também sabia que os dois melhores candidatos eram Annan e Senan. Desde o funeral do velho Abade ela os observava para decidir qual deles seria um melhor líder, mas, quanto mais pensava sobre o assunto, mais confusa ficava. Ela não podia distinguir entre eles, pois ambos tinham excelentes qualificações. Eles se igualavam em se distinguir dos demais monges como indicados para o cargo.
Esgotadas as tentativas racionais para a escolha, ela desenvolveu uma diferente forma de solução: ela decidiu fazer uma competição entre os dois homens. Sua decisão surgiu do fato de que esse monastério tinha se tornado famoso por seu scriptorium, o mais renomado em toda a igreja Cristã. Em um scriptorium, monges escreviam e pintavam aqueles maravilhosos e coloridos livros sagrados, para ilustrar os hinos e salmos. Os manuscritos produzidos pelos monges marcaram a era de ouro da incipiente Irlanda cristã e fizeram a sua fama de Ilha de santos e estudiosos.
A dona das terras então decidiu que cada um deveria fazer uma página de um livro sagrado. Cada um poderia escolher o texto e então decorar com as belas iluminuras, mas deveria fazê-lo em segredo. Quando estivessem terminadas, elas seriam expostas no refeitório, para que os monges votassem na sua preferida. A mais votada faria do seu autor o novo Abade.
Annan e Senan então combinaram os termos do trabalho e decidiram que fariam o melhor trabalho que pudessem para servir de base a um incrível livro, uma grande e brilhante obra de arte, que não seria utilizado no uso diário, mas ornaria o altar em dias especiais: um ornamento sagrado.
Por seis meses eles trabalharam incessantemente, com as melhores matérias-primas que puderam encontrar. Quando faltavam três dias para o final do prazo, eles então terminaram o seu trabalho ao mesmo tempo, se abraçaram e disseram um ao outro: “não posso esperar para ver sua página.” Emocionadíssimos, contemplaram o trabalho um do outro e depois levaram as páginas cuidadosamente para o refeitório. Annan pendurou a página de Senan e Senan pendurou a página de Annan. Por mais de uma hora, os monges as admiraram maravilhados e concluíram que seria muito difícil decidir quem deveria ganhar.
Comunicaram Delia do término dos trabalhos, que chegou imensamente animada. Ela adorou os trabalhos, mais que todos os outros. Depois de congratular os dois, ela organizou a votação secreta.
Sem contar Annan e Senan, a comunidade tinha duzentos e nove monges. Mais o voto da Delia. Duas caixas que marcavam “Página um” e “Página Dois” foram colocadas na mesa no canto mais escuro do refeitório. Cada monge deveria ir à mesa, escolher um papel colorido e colocar em uma das caixas.
Um a um os monges votaram, depois Delia e, por fim, Annan e Senan, totalizando então duzentos e doze votos. O monge mais velho fez a contagem das cédulas da caixa “Página Um” e todos ficaram admirados, pois nela havia duzentos e onze votos. Isso poderia significar que todos os monges colocaram os papéis numa caixa só por engano ou que todos os votantes, menos um, escolheram a “Página Um”.
Delia, pasma, disse que deveriam ver a segunda caixa. Os monges a olharam estupefatos, tentando imaginar a razão de sua ordem, pois certamente o resultado já era conhecido: o autor da “Página Um” seria o novo Abade. O velho monge então pegou a segunda caixa e começou a contar os votos: duzentos e onze votos! Isso significa que a “Página Um” e a “Página Dois” receberam o mesmo número de votos.
Uma grande comoção tomou conta do refeitório até que Delia interveio: “Duzentos e nove monges. E eu. Isso seria duzentos e dez votos. Mais Annan e Sennan. Isso seria duzentos e doze votos. Isso quer dizer que quase todos votaram duas vezes. Eu sei que fiz isso.” Todos aplaudiram e ela continuou, olhando para Annan e Senan: “Mas eu esperava que vocês fizessem o desempate”. Annam disse: “Eu votei no Senan” e Senan disse “Eu votei no Annan”.
“Nesse caso” disse Delia, “os dois continuam como estão; vocês administrarão a Abadia juntos. Ao invés de um Abade, vocês terão dois”.
E, assim, reza a lenda, teve início o famoso Book of Kells, o mais famoso dos antigos livros de iluminuras irlandeses. Ele encontra-se exposto permanentemente na biblioteca do Trinity College, em Dublin, onde jaz numa caixa de proteção e as páginas são viradas diariamente, de forma que, a cada dia, uma página pode ser admirada.