Algumas questões são verdadeiramente desafiantes no que diz respeito às viagens, suas venturas e desventuras. Encontrei certa luz no texto de Alain de Botton, que dá alguma orientação para se desvendar parte desses mistérios. No livro A Arte de Viajar (Rio de Janeiro, 2003, Ed.Rocco), ele pondera:
“Se nossa vida fosse dominada por uma busca da felicidade, talvez poucas atividades fossem tão reveladoras da dinâmica dessa demanda – em todo o seu ardor e seus paradoxos – como nossas viagens. Elas expressam – por mais que não falem – uma compreensão de como poderia ser a vida, fora das restrições do trabalho e da luta pela sobrevivência. No entanto, é raro que se considere que apresentem problemas filosóficos – ou seja, questões que exijam reflexão além do nível prático. Somos inundados de conselhos sobre os lugares onde devemos ir, mas ouvimos pouquíssimo sobre por que e como deveríamos ir – se bem que a arte de viajar pareça sustentar naturalmente uma série de perguntas nem tão simples nem tão triviais, e cujo estudo poderia contribuir modestamente para uma compreensão do que os filósofos gregos denominaram pelo belo termo eudaimonia ou desabrochar humano.”
(...)
“Estamos familiarizados com a idéia de que a realidade da viagem não corresponde às nossas expectativas. A escola pessimista, da qual Des Esseintes poderia ser patrono honorário, conclui portanto que a realidade deve sempre ser decepcionante. Talvez seja mais verdadeiro e mais satisfatório sugerir que ela é essencialmente diferente.”
De Botton narra como teria nascido – entre desventuras quotidianas, em pleno rigor do inverno – o desejo de uma viagem ao Caribe:
“Circunstâncias climáticas dessa natureza, associadas a uma sequência de acontecimentos que ocorreram em torno dessa época (e que parecem confirmar a máxima de Chamfort de que um homem deve engolir um sapo todos os dias de manhã para se certificar de não topar com nada mais repugnante no dia que se inicia), contribuíram pra me deixar extremamente suscetível à chegada inesperada num final de tarde de um grande folheto, com belas ilustrações, intitulado “Sol de Inverno”. Sua capa mostrava uma fileira de palmeiras, muitas das quais crescendo inclinadas, na areia de uma praia orlada por um mar turquesa, tendo ao fundo montes onde imaginei cachoeiras e alívio do calor à sombra de árvores frutíferas de doce aroma.
(...)
Os responsáveis pelo folheto tinham tido a sinistra intuição de como transformar os leitores em presas fáceis por meio de fotografias cujo poder insultava a inteligência e desrespeitava toda e qualquer noção de livre-arbítrio: fotos super expostas de palmeiras, céus azuis e praias brancas. Leitores que teriam sido capazes de ceticismo e prudência em outras áreas da vida, em contato com esses elementos, revertiam a um otimismo e inocência primevos. Os anseios provocados pelo folheto eram um exemplo, ao mesmo tempo comovente e decepcionante, de como projetos (e até mesmo vidas inteiras) podem ser influenciados pelas imagens mais simples e incontroversas da felicidade; de como uma viagem prolongada e dispendiosíssima poderia ser posta em andamento por nada mais que a visão da fotografia de uma palmeira a se inclinar levemente com uma brisa tropical.
Decidi fazer uma viagem à ilha de Barbados.”
Mais além, descreve a percepção de uma razão pela qual suas expectativas em relação à viagem não estavam sendo atendidas:
“Encontrei uma espreguiçadeira na beira do mar. Ouvia a meu lado sonzinhos de lambidas, como se um monstro simpático estivesse sorvendo pequenos gole de uma taça enorme. Algumas aves estavam acordando e começaram a voar em disparada com uma empolgação matutina. Atrás de mim, a cobertura de ráfia dos chalés do hotel aparecia entre os coqueiros. À minha frente, uma vista que eu reconheci do folheto: a praia que se estendia até formar uma curva suave na direção da extremidade da baía; atrás dela, montes cobertos pela selva e a primeira fileira de coqueiros inclinados de modo irregular na direção do mar turquesa, como se alguns deles estivessem esticando o pescoço para pegar um ângulo melhor do sol.
No entanto, essa descrição somente reflete com imperfeição o que ocorreu dentro de mim naquela manhã, pois minha atenção estava na realidade muito mais fragmentada e confusa do que o sugerido pelos parágrafos anteriores. Posso ter percebido algumas aves em vôo disparado em sua empolgação matutina, mas minha percepção delas foi diluída por uma série de outros elementos incongruentes e desconexos, entre os quais, uma dor de garganta que tinha surgido durante o vôo, uma preocupação por não ter informado a uma colega de trabalho que eu iria viajar, uma pressão que corria de uma têmpora à outra e uma crescente necessidade de fazer uma visita ao banheiro. Um fato importantíssimo, mas que até então tinha sido deixado de lado, se estava apresentando pela primeira vez: distraído, eu tinha trazido a mim mesmo para a ilha.”
Talvez seja muito difícil descobrir por que viajar, a fim de se evitar frustrações por expectativas não atendidas,mas aqui e alí vemos sinais de razões que não devem ser motivadoras de viagens... Uma delas: estar longe de si mesmo.