Deliciando-me com o livro que que ganhei da minha querida amiga Larissa, que sabe do meu gosto por haicais, deparei-me com uma ponderação que diferencia a síntese da brevidade: "o exercício da síntese pressupõe uma sofisticada operação mental, enquanto a brevidade deve ser obtida por meio da experiência imediata e pessoal da realidade, livre de artifícios cerebrais ou retóricos".
Penso que a poesia (especialmente o haicai), mais do que os outros gêneros literários, pressupõe a percepção emocional como ferramenta. Um bom exercício para tocar a alma e descansar a razão. Segundo um aforismo zen, citado no mesmo livro, "o intelecto é um bom servo e um mau mestre".
Nesta coletânea, pude conhecer haicais de diversos autores, muitos dos quais nem sabia que tinham feito esse tipo de poema. Para mim, o melhor do melhor:
Antônio Fernando de Franceschi
se o ralo verso
tem halo
é um universo
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Águas
se agitam logo
não me saciam
me afogo
Carlos Drummond de Andrade
Num automóvel aberto
riem mascarados
Só minha tristeza não se diverte.
Carlos Vogt
Falamos tudo e ainda
há o que
silenciar
***
Num Guardanapo
O movimento do homem
tende infinitamente
para o finito
Cyro Armando Catta Preta
Desolação
Fim da estrada. Só
Sem espaço para os passos.
Adiante e atrás: pó.
Erico Veríssimo
Serviço Consular
Com cartas brancas,
O senhor cônsul solta
Pombos de papel.
***
Gota de orvalho
Na corola dum lírio:
Joia do tempo.
***
Jardineiro Insensato
Passou a vida
A cultivar sem saber
A flor da morte.
Guilherme de Almeida
O Pensamento
O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
***
Infância
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
***
Pescaria
Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha.
Helena Kolody
Ressonância
Bate breve o gongo.
Na amplidão do templo ecoa
o som lento e longo.
***
Os Tristes
Em seus caramujos,
os tristes sonham silêncios.
Que ausência os habita?
Lêdo Ivo
No Meio da Rua
Exilado na multidão
sou silêncio e segredo, e venho
quando os outros vão.
***
Sabedoria
Viva o riso!
Só sabe rir quem tem
dente do siso.
***
Dia a Dia
Noite? manhã? tarde?
O meu dia é eterno
sem nenhum alarde.
***
A Cama
Amor silencioso!
Só a cama gemia,
parceira insaciável.
Millôr Fernandes
Há colcha mais dura
Que a lousa
Da sepultura?
***
Eu vim com pão, azeite e aço;
Me deram vinho, apreço abraço:
O sal eu faço.
***
Poeminha Fora da Estação II - Coragem é isso aí, bicho!
Eu sofro de mimfobia
Tenho medo de mim mesmo
Mas me enfrento todo dia.
Olga Savary
Rota
Que arda em nós
Tudo quanto arde
e que nos tarde a tarde.
***
Dionísica
O coice da flama:
égua e cavalo cavalgando
a pradaria da cama.
Waldomiro Siqueira Jr.
Íntimo
Ir e voltar, a esmo.
Estradas abandonadas
dentro de mim mesmo.
***
Anúncio
Vendo ou troco, urgente:
deserto, em lugar incerto,
por qualquer semente.
***
Noite
Meu filho, não nego
que tudo é belo. Contudo,
estou velho e cego.
***
Permanência
Um amor sem fim
às vezes dura dois meses,
ou nem tanto assim.
Rodolfo Witizig Guttilla
a vida tratou-me bem
tive como quando onde
e nunca faltou-me quem
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Ué! Você poderia se perguntar: Cadê Alice Ruiz? Não estava na coletânea?
A Alice Ruiz foi quem me apresentou o haicai e através dela é que passei a amá-lo. Eu já sabia que ela tinha abraçado o haicai no seu encontro com Paulo Leminsky, mas, estranhamente, eu nunca tido lido os haicais do Paulo Leminsky, até ver essa coletânea.
Depois de lê-los e saboreá-los juntos aos da Alice Ruiz... não pude incluí-los dentre os melhores. Na minha opinião, eles (os deles) são o próprio
haimi (sabor poético).
Paulo Leminsky Alice Ruiz
Soprando esse bambu por uma só fresta
Só tiro entra toda a vida
O que lhe deu o vento que o sol empresta
*** ***
pelos caminhos que ando há de vir no vento
um dia vai ser admirado de si mesmo
só não sei quando esse advento
*** ***
abrindo um antigo caderno sem saudade de você
foi que descobri sem saudade de mim
antigamente eu era eterno o passado passou enfim
*** ***
cortinas de seda rede ao vento
o vento entra se torce de saudade
sem pedir licença sem você dentro
*** ***
acabou a farra primavera
formigas mascam até a cadeira
restos de cigarra olha pela janela
*** ***
a palmeira estremece ouvindo Quintana
palmas pra ela minha alma
que ela merece assobia e chupa cana