quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Escuta interior


Recebi um texto da minha querida Camila, menina que vi crescer, que muito me emocionou, não só pela qualidade do texto, mas também pela sensibilidade das suas palavras:


Não sei dizer exatamente quando começou. Não sei dizer quando ele apareceu pela primeira vez. Não sei se foi culpa do meu vício perigoso em livros. Mas é mentira. Eu me lembro exata e perfeitamente de tudo: de como Hogwarts me foi apresentada, de como as formas e as cores e as vozes e os amores foram se tecendo diante dos meus olhos. Como mágica, eu poderia dizer por ironia. Começou quando eu tinha dez anos e a minha prima Andrea me mostrou um livro de nome estranho. “Poucas páginas.”, pensei assim que o vi. E lá naquele prédio à beira da Praia do Futuro, eu li as primeiras páginas de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Algum tempo depois, minha mãe me comprou um exemplar. Eu o reli e senti tudo de novo. Como muitos, esperei – e me frustrei depois – a minha carta de Hogwarts. Eu me lembro de ficar na janela do apartamento da minha tia Idalba, na noite de natal (um mês e meio depois de ter completado onze anos), vendo as luzes e imaginando – com a minha mente colorida de criança – se eu poderia ser tão especial assim. Perdoe a minha inocência. Os outros livros vieram rápido demais. O meu preferido, o sexto livro, foi o que mais demorei a terminar. Muitas pessoas liam em três dias, uma semana. Eu, não. Eu me agarrava às páginas como se minha vida dependesse daquilo. Não esperava que alguém entendesse, mas foi com dezessete anos que o terminei e foi com dezessete anos que chorei como uma criança de onze. E quando acabou, quando o seu ar sombrio se depositou no fundo da minha cabeça, tudo o que eu pude fazer foi me apaixonar por um personagem chamado Severus Snape – talvez por existir nele muito de mim e do meu mundo que ninguém nunca vai conhecer. Você vai entender quando chegar lá.
 Harry Potter foi dono de muitas das minhas primeiras vezes: o quinto livro havia sido o maior que eu havia lido, até então. Foi o primeiro livro que me fez chorar. A Pedra Filosofal foi o primeiro livro em inglês que eu cheguei a ler por completo. Foi a primeira vez que eu me VESTI de um personagem e caminhei por um shopping cheio de gente que jamais entenderia o motivo. Foi dono das minhas primeiras madrugadas em claro. Foi o meu primeiro vício. Eram duas ou três da manhã quando a escritora J. K. Rowling divulgou o nome do sétimo e último livro da saga Harry Potter. O lançamento mundial (em inglês) aconteceu no dia 21 de julho de 2007. E eu estava na antiga livraria Siciliano do shopping Iguatemi, esperando pelas caixas que chegariam em algumas horas. Duas ou três pessoas estavam com os olhos vermelhos – eu me perguntei o porquê. Era tarde quando os vendedores da livraria entraram com caixas e mais caixas de exemplares novinhos e pediram para que nós fizéssemos uma fila. Confesso que existe um espaço em branco na minha cabeça entre o momento em que eu o abri pela primeira vez e o momento em que cheguei no capítulo “A Rua da Fiação” – não, esse não é o nome do último capítulo, eu sei. Se você não leu, meu caro, não deve estar entendendo nada do que eu estou falando; se você viu apenas os filmes, talvez ache que estou exagerando. Então, eu peço, dê-se a chance e leia a saga. Eu não prometo que os seus arrepios serão iguais aos meus, eu não prometo que você se sentará na poltrona do cinema – à meia noite do dia 15 de julho de 2011 – e chorará como eu chorei, nem que terá os mesmos motivos que eu para sentir o que eu senti, motivos esses que não cabem escrever aqui por serem pessoais demais. Mas me cabe nesse exato momento – no mínimo – uma última confissão: Harry Potter me salvou. De todas as formas possíveis. Em todos os pontos que hoje formam a minha consciência e as minhas vitórias. Em seus detalhes e em suas palavras frágeis. Talvez um dia você entenda, talvez não. Eu, sinceramente, espero que sim. Farei vinte anos em dois meses e, hoje, fui para a faculdade com uma blusa escrita em letras grandes “I have stuck with Harry until the very end.” (Tradução: Eu fiquei com o Harry até o fim.) Eu terei vinte anos, eu poderia ter setenta, as minhas pernas sempre ficarão fracas quando eu reler os seus livros – como se fosse a primeira vez. Os seus personagens serão meus melhores psicólogos, suas folhas serão minhas melhores amigas, eu prometo, mas essa promessa eu fiz há muito tempo, sem saber. Naquela noite, quando a Andrea me entregou o livro pela primeira vez. 
A Warner Bros. (que produz os filmes de Harry Potter) está usando o slogan “Tudo acaba aqui” no pôsteres do último filme, mas eu digo: não acaba. Pois “Hogwarts sempre estará lá para aqueles a que ela recorrerem.” A professora McGonagall não poderia estar mais certa quando disse, em uma das primeiras páginas da Pedra Filosofal:“Ele vai ser famoso, uma lenda. Eu não me surpreenderia se o dia de hoje ficasse conhecido no futuro como o dia de Harry Potter. Vão escrever livros sobre o Harry. Todas as crianças no nosso mundo vão conhecer o nome dele!”Por fim, eu agradeço a J. K. Rowling por ter me concedido uma infância secreta que em silêncio eu guardei no meu coração. E é pra sempre. 
(Camila Lopes, 15 de julho de 2011. Escrito logo depois de chegar da pré-estréia do filme Harry Potter e as Relíquias da Morte).

Muito frequentemente me deslumbro com lugares que visito e histórias que leio e me pergunto como é possível tal arrebatamento.  Recentemente li um trecho de um livro que lança luzes sobre a questão:

"Penetramos numa história pela porta da escuta interior. A história falada toca no nervo auditivo, que atravessa a base do crânio até chegar ao bulbo do cérebro logo abaixo da ponte de Varólio. Ali, os impulsos auditivos transmitidos para cima para o consciente ou, segundo dizem, para a alma... dependendo da atitude de quem ouve.
Antigos anatomistas falavam de o nervo auditivo dividir-se em três ou mais caminhos nas profundezas do cérebro. Eles concluíram que o ouvido devia, portanto, funcionar em três níveis diferentes. Um deles seria o das conversas rotineiras da vida. Um segundo seria dedicado à aprendizagem e à arte. E o terceiro existiria para que a própria alma pudese ouvir orientações e adquirir conhecimentos enquanto estivesse aqui na terra."*

Talvez esse arrebatamento seja possível quando deixamos entreabertas as janelas da alma.

*Clarissa Pinkola Estés

Um comentário:

  1. Camila tem a sensibilidade de Giovana... muito lindo, muito doce, muito verdadeiro! Thanks God pelas histórias que salvam a nossa vida. As histórias antigas que já conhecemos e relemos, as novas, que trazem surpresas por que não esperávamos. A capacidade de nos apaixonar over and over again, de entrar em mundos diferentes, e de esperar a nossa carta para Hogwarts chegar - aos 11, aos 30, aos 40, aos 90...

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